Quais histórias a gente carrega no corpo, como tranças que se estendem pelos caminhos? Quais objetos escolhemos para atravessar o tempo, deslocando-os conosco pelas mudanças de casa, de cidade ou de geração? Quantas memórias cabem num caderno ou numa caixa de brincar?
Sobre o projeto
O Coletivo Entrevazios nasce e reivindica Brasília sob uma perspectiva de criação a partir do encontro. Nossos mapas indicam sempre nessa direção: o norte é uma invenção, o sul talvez seja abraço, os centros são muitos e fazem um barulho alto de história sendo contada pra se ouvir atentamente. As poéticas urbanas nos marcam em formas coletivas de habitar, trabalhar e existir, mas antes porque as vozes que nos antecedem acenam como faróis.
Se prestássemos mais atenção, todos saberíamos. Foram as mãos e os corações de centenas de mulheres anônimas que forjaram essa cidade – e não qualquer outra coisa que digam. Não foram as ideias monumentais, mas as políticas das miudezas, das luzes que se acendiam dentro das casas de chão de terra na hora exata, das divisões precisas dos conteúdos das panelas de barro, das sinfonias que a água criava dentro das bacias, e das crianças que, mesmo longe do berço, aprendiam a rimar.
Para ouvir essas histórias e fazer ecoar a força de suas protagonistas, criamos a “Barraca de Memórias”, um ciclo itinerante de escuta, que nada mais é do que o nome diz: uma barraca que conduz, troca, instiga ou faz dançar as memórias. Passamos por Planaltina, Vila Planalto, Paranoá, Núcleo Bandeirante, Brazlândia, Candangolândia e Vila Telebrasília, regiões criadas antes da inauguração da cidade-capital e, também por isso, suas principais testemunhas. Foi ali que se estenderam os acampamentos dos operários e suas famílias, onde habitaram, riram, fizeram filhos, rezaram e, vejam só, onde também encontraram tempo para sonhar.
As vozes das mulheres idosas que ouvimos foram como sementes. Seus objetos pessoais abriram caminhos para dentro e para fora, esticando suas memórias até nós para que pudéssemos colher coletivamente. Desses encontros-plantios nascem o mini-documentário homônimo “Barraca de Memórias” e o espetáculo-museu “Carrego o que posso, faço quintal onde dá”, que circulou por todas as regiões em que passamos antes, em preciosos frutos-reencontros.
Algumas memórias a gente escolhe trazer sempre perto e outras não. Mas é feito fagulha. Feito água borbulhando em fervura antes de virar chá. Vai pipocando dentro da gente, até que se escolhe o que se fazer com ela. E o Coletivo Entrevazios escolhe, sempre, compartilhar. Nesse espaço que é nuvem, que é vento e se espalha no ar, dividimos o Acervo Poético de Objetos da Barraca de Memórias, essa pesquisa-sonho que já fez uma floresta inteira dentro da gente.
Sobre as mulheres
De acordo com a legislação brasileira, as pessoas passam a ser consideradas idosas a partir dos 60 anos. Se a lei incluísse também as cidades, Brasília, que ainda é uma menina, já seria uma mulher idosa. Assim como Anilda, Terezinha, Juraci, Maria de Lourdes, Maria Silva, Marilda Bezerra, Maria Deides, Otacília Antunes, Ester, Maria Aurelina, Maria de Lourdes, Genilda da Silva, Delsione, Cleo, Sandra, Rosimeire, Almerinda, Delaine, Chiquinha, Denise, Lourdes, Ieda, Neura, Jandira.
Como Meire, Maria Ceci, Beth, Silvia, Elizete, Cleo, Vânia, Rejane, Rosângela, Creusa, Sidna, Lucilene, Joaninha, Dulcinéia, Sônia, Iria, Josefa, Maria Helena Lorena, Lourdes , Eva, Helena Pires, Graça, Maria Lúcia, Solange Maria, Rita, Teresa, Francelina, Gercina, Nilzeth.
Como Deusdélia, Iracema, Divina Aparecida, Maria Julia, Maria de Lourdes, Marly, Maria das Dores, Maria Zilda, Maria Casimiro, Ana da Conceição, Iolanda, Maria Antônia, Pedra, Rosélia Maria, Telma, Maria Laura, Maria Soares, Antônia, Francisca Maria.
Como Maria Raimunda, Laura Julia, Ada Lyra, Francisca, Mercedes Maria, Antônia Matias, Luzia, Antônia Alves, Edna, Renata, Lindalva, Antônia, Marilza Luciano, Gildred, Simone, Lídia Henrique e Hilda Áurea.
Essas mulheres e Brasília têm um trato: uma conta as histórias da outra. Como velhas amigas, seus caminhos vão se complementando. Uma já não lembra como começou, mas a outra sabe exatamente a música que tocava no baile. Se a lembrança desliza e escorrega, a outra a segura pela mão para dizer: eu ainda tenho a receita anotada naquele caderninho.
Durante o ciclo itinerante da Barraca de Memórias, todas essas mulheres, espalhadas por sete regiões do Distrito Federal, se encontraram – ainda que não saibam da existência uma da outra ou que tenham trajetórias tão distintas. Suas lembranças se reuniram em torno de ferros de passar roupa, retratos amarelados, agulhas de tricô e discos de vinil. E quando uma delas, em Planaltina, contava da terra natal que deixou ainda tão moça para vir ganhar a vida na nova capital, era como se acendesse a lamparina dentro da outra, em Brazlândia, rememorando os detalhes do pau de arara que a trouxe até aqui.
Entre elas, essa senhora de pés avermelhados pelo tempo chamada Brasília.
Talvez alguns desses nomes também seja o seu. Ou o da sua mãe, da sua irmã, da sua avó. Talvez seja o nome da sua companheira, da sua filha, daquela amiga que você perdeu o contato. Todas elas nos cederam o que têm de mais precioso: seu tempo. E é desse tempo que se garimpam as melhores histórias.
Sobre os objetos que compõem o Acervo da Barraca de Memórias
Um acervo é um conjunto de coisas reunidas por um valor ou significado em comum. Essas coisas podem ser de todo tipo: obras de arte expostas em um museu, admiradas por seu valor artístico e avaliadas por seu valor econômico; ou mesmo coisas miúdas, como uma fotografia de uma avó, uma caixa de madeira, uma panela de ferro ou uma passadeira de crochê.
Existe, por aí, gente muito atenta construindo acervos de sons, de cheiros, de plantas do Cerrado. Certamente há algum poeta catalogando palavras bonitas ou curiosas, como “saudade” ou “tamborete”. Os acervos são o que são porque alguém olhou para todas as coisas incríveis que há no mundo e construiu uma ponte entre algumas delas, relacionando-as, dando-lhes um sentido comum, uma irmandade, uma nova razão de ser coletivamente.
Construir um Acervo Poético da Barraca de Memórias poderia ser um caminho óbvio, portanto, mas tem muito mais de travessia e sorte, de atenção e intuição do que de materialidades. Os objetos que compõem esse acervo foram garimpados de nossas próprias gavetas, das estantes de nossos pais e armários proibidos de nossas avós. Também fomos encontrados por eles em feiras de antiguidades, brechós e antiquários, quando tropeçamos distraidamente em seus segredos e mistérios. Alguns foram ressuscitados: por que deixaram uma boneca entre os escombros de uma casa antiga ou por que razão abandonariam uma radiola em um ferro velho?
Outros foram emprestados, já que por alguns momentos as mulheres que ouvimos toparam dividir seus tesouros conosco, como aquele facão enferrujado, o copinho de alumínio ou o jarro de barro que nunca deixa esfriar o café.
Em comum, eles trazem a poesia. Despertam a memória, conduzem histórias quase esquecidas, dão lugar para o inesperado. Um canivete dedicado a descascar laranjas pode soar como uma declaração de amor nunca pronunciada. Um livro de cordel pode ter o gosto da lágrima derramada pelas histórias da Princesa Heliodora. Materializam o sonho, o sacrifício, o cuidado e a coragem.
Os objetos que compõem o Acervo da Barraca de Memórias trazem as vozes daquelas mulheres do Distrito Federal, que atravessaram nossa caminhada de forma tão potente, e que não deveriam nunca parar de cantar.
Coletivo Entrevazios: criação a partir do encontro
O Coletivo Entrevazios nasce do desejo de transformar memórias e encontros em poesia viva. Com sede em Brasília, o grupo investiga e cria narrativas que conectam o público às histórias, objetos e experiências que moldam o cotidiano. Inspirados pelas camadas invisíveis da cidade, o coletivo explora a potência das relações humanas e a riqueza de um patrimônio construído por muitas mãos, especialmente as das mulheres que sustentam e reinventam os espaços que habitamos.
O Entrevazios acredita na força do coletivo como caminho para ouvir, compartilhar e ressignificar. Suas ações passam pela ocupação de territórios, como feiras, praças e espaços culturais, sempre guiadas pela valorização da escuta ativa e da memória afetiva. O grupo cria experiências artísticas como espetáculos, instalações, documentários, oficinas e acervos que celebram a pluralidade de vozes e histórias.
Para o Coletivo Entrevazios, os centros não são únicos, o norte é uma invenção, e o sul pode ser abraço. O que importa é o encontro — entre pessoas, tempos, objetos e ideias — e as novas geografias que surgem dessa troca. No intervalo entre um vazio e outro, há sempre um universo de histórias esperando para ser descoberto.